quarta-feira, 2 de janeiro de 2008

UM LAR (por Alan Ford)


 

    Muitas vezes, ainda na adolescência, quando aflorava minha paixão pelas ciências, abstraia-me a observar meu velho pai sentado em sua cadeira de balanço, já há anos sem sair de casa nem mesmo para as rotinas mais vulgares como comprar o pão e leite pela manhã, ou os jornais do dia. Não que a saúde o impedisse, ele era até bem forte para a idade, mas por que assim o queria. Ficava ali, mirando as samambaias da varanda, balouçando com as mãos as delicadas folhas da avenca e, maquinalmente, empurrando pra frente e pra trás a velha cadeira, repetindo um infinito ranger que até hoje me ecoa nas lembranças.

    Eu me entertia com os estudos elementares de química ao mesmo tempo que outra parte de minha curiosa mente deleitava-se com as inúmeras possibilidades que a ciência da eletrônica descortinava. Ele, vez por outra, questionava-me sobre alguns experimentos, mas logo se enfadava das orgulhosas explicações e voltava às suas mini-tarefas. Naqueles momentos eu conjecturava em como seria seu contato com o mundo novamente. Como um homem que viu o dirigível revolver os céus da capital, passou incólume por duas guerras e registrou o seu tempo em fotografias tomadas de uma Roleyflex enxergaria as transformações que se avolumaram no planeta enquanto ele perpetuava o som da madeira no vai-e-vem da cadeira na varanda?

    A tecnologia, hoje, remonta aquelas mesmas sensações que tive em um eixo de tempo muito mais curto e injusto com aqueles que se apegam a tradições. A eletrônica que outrora figurava-se em minha mente como o supra-sumo da rebeldia ante um mundo arcaico e linotipado por artefatos mecânicos ficou já relegada à condição de ciência auxiliar. A informática arrebatou-lhe a coroa. Quase não se concebe mais o universo-aldeia sem as acrobacias dessas velocíssimas máquinas de cálculo. Compete tão acirradamente com as outras tecnologias e suplanta-as com tal destreza que a não ficar ociosa passa a competir consigo mesma.

    Visitando um velho amigo da estrada de ferro, encontrei-o em casa diante de um computador e falando ao celular. O diálogo me soou conhecido, pois era o linguajar utilizado pelos agentes de estação quando dos trabalhos relacionados ao tráfego das composições. Ora, antigamente fazia-se este serviço dependurado sobre uma estação rádio-operadora em que o trabalhador era praticamente obrigado a gritar no microfone para enviar sua mensagem e colar os ouvidos no alto-falante tentando filtrar a voz do companheiro em meio aos ruídos de estática e ao ensurdecedor trepidar das rodas dos vagões amalgamando os trilhos sobre dormentes. Havia o telégrafo, verdadeiro pânico dos novatos, que levava a quilômetros seus bips longos e curtos, cumprindo com eficácia o papel de carteiro eletrônico. Dei graças quando aquela parafernália acabou, mas confesso que ela possuía um certo charme.

    Apesar de me regozijar com o saudosismo, não me alienei do mundo como o fez meu pai, mas também resisti à metamorfose que me tornaria o "homo-tecnologicus" , gênero comum da contemporaneidade. Ainda sinto prazer em usar a caneta tinteiro, amassar as letras com o "mata-borrão" e experimentar as lições alquímicas num tosco cadinho. Manusear tubos de ensaio e produzir fragrâncias é como estar mais próximo da natureza, aquela natureza que passamos a conhecer apenas através das telas de vídeo.

    Conheci lares, mas nunca os tive por meus. O universo se minimizou e seus co-habitantes enclausuraram-se sob a máscara da segurança. Sou filho do mundo, meus braços, tentáculos das árvores; todo o meu corpo, um prolongamento dos troncos frondosos que me agasalharam na jornada. Destarte todo o mecanicismo, meu coração clama por sossego, um espaço onde me sinta dono de algo, velhos livros, bons amigos, comida caseira e quem sabe, um amor a quem me dedicar.


 

(Alan Ford)

Ano último do primeiro milênio.